segunda-feira, 6 de agosto de 2012

Doenças gnósticas: A EXALTAÇÃO IMAGINATIVA

Qual o sentido da vida? Porque estamos aqui? Estas questões corriqueiras, já tão gastas pelo uso, podem soar aborrecedoras ou mesmo oportunistas a muitos ouvidos, quando recebidas desde o mundo exterior. Entretanto, não há no planeta um único indivíduo vivo que, no silêncio de sua intimidade, possa permanecer indiferente diante de tão severas interrogantes, quando elas ressurgem de seu mundo interior. A busca de sentido é o impulso mais urgente da alma, que persevera em ver um significado superior em sua existência. Podemos aturar tudo, exceto a falta de sentido para a vida.

Para fugir da mesquinhez, do absurdo e da monotonia de uma vida sem sentido o homem cultiva dentro de si variada sorte de ideais. O ideal é a meta, age como um ímã que atrai nossas forças psíquicas à uma direção única, impulsionando nossos pensamentos, sentimentos e ações a trabalharem em sinergia para consecução do bem almejado. O ideal é o porto final a desembarcar, a Ítaca de Ulisses, onde se encontram todos os valores prezados à alma, que nos fazem acreditar que vale a pena enfrentar qualquer sacrifício ou desafio. 

Por todas suas características, o ideal deve sempre estar projetado no futuro, como algo ainda não alcançado, mas passível de realização. E para que as aspirações do homem possam se concretizar, transformando-se em atos e obras, são necessárias duas posturas correlatas: humildade e admiração. A humildade coloca o ideal em sua função e lugar exato em nossas almas, ou seja, ajuda-o a ser um referencial futuro que arbitra as situações do presente; a admiração nos incentiva a persegui-lo. Qualquer desobediência a essas duas premissas podem causar sérios danos à pessoa, às suas relações sociais e, pior ainda, desviá-lo do ideal mesmo. Um destes processos de desviação foi denominado pelo psicólogo Paul Diel de “exaltação imaginativa”. Vejamos os comentários do Prof. Olavo de Carvalho a este respeito:
A exaltação imaginativa é um estado em que a mente, embevecida com o seu ideal, se identifica mais ou menos inconscientemente com ele e atribui a si as perfeições que a ele pertencem, como se já as tivesse realizado. Para Diel, o símbolo por excelência da exaltação imaginativa é o vôo de Ícaro. As asas de cera representam a força da imaginação, que só pode elevar aos ares um corpo imaginário. O exaltado toma o potencial por atual, imaginando possuir as perfeições a que aspira. Por isto mesmo, sua alma experimenta, como num choque de retorno, um sentimento de estranheza e de impotência perante o mundo, que não cede, como ele esperava, aos seus encantos ou poderes. Acuado pelas exigências da realidade, ele exacerba ainda mais sua adoração de si mesmo diante de um mundo que ele julga vil, mesquinho e incompreensivo, quando na verdade é ele mesmo quem não compreende o mundo e, por não compreendê-lo, está impotente para agir nele. É a síndrome do "jovem incompreendido", que, pela simples razão de ter aspirações elevadas — ou que lhe pareçam elevadas — já se sente ipso facto superior ao seu ambiente e, portanto, limitado ou coagido pela mesquinhez real ou aparente dos pais, da escola, da sociedade, do emprego, etc. Nem sempre ele declara seu sentimento em voz alta; uma vaga intuição do caráter doentio do seu estado pode envolver este sentimento numa complexa rede de disfarces, atenuações e racionalizações muito difícil de deslindar. Também é certo que seu diagnóstico depreciativo sobre o mundo em torno pode ser, em si mesmo, objetivamente verdadeiro, sendo falso apenas o lugar e a função que ocupa na sua alma, já que a degradação do mundo lhe aparece, por vezes ao menos, como uma espécie de contraprova de suas próprias qualidades excelsas. Não raro o doente alia-se a outros jovens imbuídos do mesmo sentimento, em busca de apoio e confirmação de suas queixas contra o mundo. A comunidade de sentimentos e a repetição das queixas, criando uma atmosfera de comprovação intersubjetiva, parece dar consistência real ao diagnóstico distorcido e subjetivista que cada um dos membros do grupo faz quanto ao estado do mundo, legitimando seu discurso contra a mediocridade e grosseria das pessoas "de fora". "Estar dentro" do grupo é então sinal de uma espécie de eleição, a prova de uma qualidade excelsa e incomunicável. O sentimento de ter acesso a algo misterioso, profundo, especial, pode exacerbar a exaltação imaginativa ao ponto de provocar uma verdadeira ruptura com a realidade ambiente, incapacitando o indivíduo para o cumprimento dos deveres sociais mais elementares. 1

Esta é, precisamente, a doença que aflige, em maior ou menor grau, a todas as causas políticas, sociais e econômicas do mundo moderno. Seus membros passam a vê-las, por projeção, como manifestação concreta e atual daquilo que tanto aspiram. A causa termina por se confundir com o ideal defendido, usurpando deste os valores que se lhe são próprios. Sua estrutura material ganha, de tal modo, uma aura de autoridade, mesmo que seu conteúdo – notadamente, as pessoas – esteja longe de representá-lo.

Neste aspecto, as associações gnósticas são ainda mais pretensiosas, pois os ingredientes ditos espirituais potencializam a exaltação imaginativa. O fato de elas justificarem suas existências a uma suposta conexão e patrocínio do sagrado – seja de um homem iluminado ou da “Loja Branca” - lhes dá ares de beatitude. A associação se apresenta, portanto, como algo acabado, perfeito, e suas obras e diretrizes o reflexo cristalino dos desideratos divinos.

Os “saltos exaltativos” podem muito bem ser identificados nos discursos de cada um de seus membros que, hora ou outra, inflam os pulmões para afirmar:

a) “temos um corpo de doutrina completo que sintetiza toda sabedoria universal e dá respostas a todas as aflições humanas, sendo desnecessário buscar outras fontes de conhecimento, pois a prática do que já se possui é suficiente”. 2

b) “Somos a única associação verdadeira, aquela que conservou as tradições de forma pura e, por tal razão, tem mais capacidade de ajudar seus integrantes e a humanidade do que qualquer outra”.

c) “Somos o Exército de Salvação Mundial, os responsáveis por retirar as almas do materialismo e ignorância estanques para despertar suas consciências às suas possibilidades transcedentais”.

d) “Estamos conectados com a Divindade, representada pela “Loja Branca”, da qual recebemos orientação e suporte.

O membro da instituição que se deixa persuadir por estes discursos se sente, cada vez mais, autossuficiente em vários aspectos de sua vida. Se nos limitamos aos dizeres acima citados, temos, por exemplo, autossuficiência nos campos: intelectual (relacionado com o item a); social (item b); vocacional (item c); e espiritual (item d).

Cada característica exaltativa funciona como uma pátina ignominiosa que camufla a verdadeira essência da estrutura material defendida (uma escola, uma associação, um partido político) até transformá-la em uma miragem perigosa. Já não se discute sua grandeza pelo nível das pessoas que a compõem, pelas obras que realiza ou pelo legado cultural que deixa à humanidade. Ela é grande por si só, por sua própria vontade e decisão, como se o simples fato de existir já bastasse. Esta autoproclamação e autoafirmação soam como brados imperativos que reverberam no subconsciente de cada um de seus integrantes, estremecendo o seu senso da realidade. Quando se apercebe, ele já prostrado ante a instituição, seu ideal antecipado.

O desfecho do processo é perverso. A pessoa acaba por se sentir em um porto seguro onde crava seus pés profundamente já que a mínima possibilidade de se ver novamente no labirinto da vida o aterroriza. Ali teria que encarar novamente - sozinho! - dúvidas, crises, dificuldades e provações recorrentes. Tribulações que, de sua zona de conforto, são respondidas facilmente com um chavão ou frase feita característico de seu meio que, se escutados com atenção, soam mais como um suspiro de alívio. O sujeito se aferra a estes discursos vazios com tanto afinco pois são o mais próximo da imagem do ideal que sua mente entorpecida conseguiu alcançar.

É a eloqüência falastrona daqueles que perderam a fé no ideal. Embevecidos pela soberba já nada fazem para buscá-lo e, por mais que pensem que estão progredindo, não percebem que estão se emaranhando cada vez mais nos caminhos da confusão e do engano. Homem de pouca fé, porque duvidaste? Mais vergonhoso do que se afogar ao pisar em falso sobre as águas, é permanecer no bote salva-vidas sem se dar conta de que a fé, a vontade, a maturidade, enfim, a proximidade do ideal, só se alcançam, justamente, enfrentando o oceano do desconhecido; e de braçadas descoordenadas à gestos precisos, chegar a exercer sobre ele domínio e poder. 

Mas aos olhos da instituição, um ato de coragem, quando voltado contra ela, é tido como heresia. Por tal motivo só pode existir um antídoto para esta doença: dessacralizar o contingente e transitório para colocar os valores em seu devido lugar, ou seja, no mundo soberano do ideal. Quando acreditamos que há uma autoridade abstrata insuperável - seja moral ou espiritual -, acima de qualquer outro ente terrenal, regulamos nosso sentido da realidade e voltamos, assim, a ver o mundo de uma forma equilibrada.

1 - http://www.olavodecarvalho.org/apostilas/ideais.htm
2 - Uma doutrina espiritual é, por definição, idealista. A crítica, portanto, não é à doutrina, mas aos seus defensores, que insistem em apresentar seu Ensinamento como uma tábua de salvação, sem ao menos compreendê-lo minimamente. Isso os torna incapazes de dialogar com outras idéias, pois tão logo elas aparecem são taxadas de inferiores ou incompletas.

2 comentários:

  1. VIVEMOS EM UM PLANETA QUE CRUCIFICA CRISTOS!!!!!!!!

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  2. INTERESSANTE,COMO ESCRITOR EXPRESSA ESSENCIALMENTE "BEM"

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